O modelo de Copérnico é puramente heliocêntrico?

Rubens Machado, Abril 2013

Sim e não.

Para a maioria dos propósitos, heliocentrismo e copernicanismo são duas palavras quase sinônimas. Geralmente, quando falamos em Copérnico, temos em mente o célebre diagrama de sete circunferências. Esquematicamente, apresentam-se as órbitas circulares dos seis planetas então conhecidos: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno. Importantemente, a Terra figura como um dos planetas. Há uma sétima circunferência, a mais externa, que representa a esfera das estrelas fixas. Temos portanto sete circunferências concêntricas, centradas no Sol. (Há também a órbita da Lua ao redor da Terra, mas só precisamos nos preocupar com planetas).

Este diagrama foi e é extremamente útil. Do ponto de vista pedagógico, ele ilustra claramente as características mais importantes do copernicanismo: a centralidade do Sol, e o entendimento da Terra como um dos planetas. Na época, ele também serviu para ilustrar a simplicidade e a harmonia do sistema de Copérnico.

O diagrama de sete circunferências concêntricas é portanto eficaz, simples e elegante. Mas não é a história toda.

Este diagrama é uma simplificação. Ele não representa fielmente o sistema copernicano. De fato um tal esquema de sete circunferências simplesmente não funciona. Isto é, ele não pode ser efetivamente usado para se efetuar os cálculos das posições planetárias. Se fosse empregado para este fim, ele forneceria posições ainda piores do que as de Ptolomeu. Para obter resultados adequados, Copérnico precisou lançar mão de recursos como epiciclos e deferentes excêntricos, assim como fizeram todos os astrônomos matemáticos que o antecederam. Copérnico aboliu o uso de equantes, no entanto. Com estas técnicas, Copérnico obteve acurácia comparável à de Ptolomeu, mas não necessariamente melhor.

epicycle.jpg
Sistema copernicano emprega epiciclos e excêntricos
(De Revolutionibus Orbium Coelestium, 1543)


O que isso significa? Significa que no sistema copernicano, os planetas não orbitam o Sol: orbitam (circularmente) pontos geométricos que, por sua vez, orbitam (circularmente) o Sol. Mais do que isso, os centros dos deferentes (circunferências que carregam os epiciclos) podem não coincidir com o Sol. Globalmente, podemos afirmar que, sim, os planetas se movem 'ao redor' do Sol. Entretanto, não descrevem órbitas circulares centradas nele.

Isso quer dizer que o sistema copernicano não era heliocêntrico? Bom, se afirmarmos que -- por causa de epiciclos e excêntricos -- Copérnico não era puramente heliocêntrico, então seremos obrigados a afirmar que -- pelos mesmos motivos -- tampouco era Ptolomeu puramente geocêntrico. Neste caso, estaremos deixando uma distração ofuscar o cerne da questão.

Por outro lado, a noção de que Copérnico teria sido o responsável por pôr fim aos epiciclos é um equívoco histórico bastante difundido. Convém sabermos que não foi este o caso: Copérnico de fato empregou epiciclos.

Em retrospecto, somos capazes de entender porque o diagrama simples de sete órbitas circulares não teria como ter sucesso. Sabemos que as órbitas planetárias são elípticas. Epiciclos e deferentes excêntricos estavam -- inadvertidamente e de forma aproximada -- emulando certas propriedades das elipses.

Curiosamente, Kepler foi ainda mais copernicano que Copérnico em certos aspectos. Ou seja, Kepler levou o heliocentrismo mais a sério. Mas para explicar porque, precisamos descer a um nível mais técnico de detalhes. Kepler, além de desvendar o formato correto das órbitas, livrou o sistema de certos arcaísmos matemáticos. Por exemplo: Copérnico atribuía certas funções especiais à Terra: os planos das órbitas dos planetas se interceptavam todos no centro da Terra. Kepler, insistindo no caráter central do Sol, fez os planos se interceptarem no Sol, não mais na Terra. Em outro exemplo: Copérnico media a excentricidade da órbita circular da Terra com relação à posição do Sol; entretanto, as excentricidades dos outros planetas eram relativas ao centro da órbita da Terra. Novamente, Kepler insiste que a Terra não deve ter nenhuma função especial: ao medir todas as excentricidades com relação ao Sol, Kepler diminuiu o número de circunferências necessárias e resolveu um pseudo-problema que Copérnico causara (uma suposta variação das excentricidades dos planetas inferiores). Graças à visão de mundo proporcionada por Copérnico, os astrônomos seguintes puderam explorar detalhadamente conseqüências adicionais do heliocentrismo. Ainda assim, o Sol ocupa um foco -- mas não o centro -- das órbitas elípticas keplerianas.

Por contraste, dificilmente chamaríamos o sistema de Tycho Brahe de puramente heliocêntrico, ou puramente geocêntrico. Neste sistema híbrido, a Terra é estacionária, com o Sol a orbitando. Entretanto, o Sol carrega ao redor de si as órbitas de todos os outros planetas. No sistema tychoniano, não é óbvio decidir a qual corpo devemos atribuir o caráter mais 'central'. Já nos sistemas de Copérnico e Ptolomeu, está claro quais são respectivamente os corpos dominantes.

Então, Copérnico é estritamente heliocêntrico? Bom, estritamente, pode não ser. Mas toda a monumental importância da proposta copernicana depende justamente disso: de termos o Sol como o corpo 'central' em algum sentido, mesmo que os movimentos planetários não sejam circunferências simples. Portanto Copérnico é tão heliocêntrico quanto Ptolomeu é geocêntrico. E ambos precisaram de epiciclos.


Referências

Kuhn, T. S., 1957, The Copernican Revolution: Planetary Astronomy in the Development of Western Thought, Cambridge, Harvard University Press

heliocentrico.pdf