A Astronomia Brasileira antes da SAB

Palestra de abertura da 38ª reunião anual da SAB (Búzios, RJ, 31/8/2014)

 

Obrigado pelo honroso convite para falar sobre os primeiros tempos da moderna Astronomia Brasileira. Eu preferiria falar sobre marés ou exoplanetas, mas vou assumir minha idade e meu papel de sócio N0. 1 da SAB e falar do passado. Mas antes tenho que fazer uma ressalva importante. Eu não sou historiador e não vou falar sobre a história da nossa Astronomia. Será um depoimento sobre fatos de que de algum modo participei e, por essa razão, incompleto. Os esforços à essa época conduzidos no CRAM, na UFRGS e no Rio de Janeiro, não serão mencionados pois não os vivenciei.

A ideia que me foi passada pela Diretoria da SAB é que seria importante transmitir aos mais jovens uma idéia do que era a Astronomia no Brasil antes da SAB, e é isso que farei.

 

1.   A pré-história.

A Astronomia Brasileira, depois de um início tímido durante o Império (Emmanuel Liais, Louis Cruls), morreu nos anos 1930! O último trabalho realizado foram as 16500 observações de pares de estrelas feitas por Lélio Gama, com a luneta zenital do Observatório Nacional.

Mas mesmo esse trabalho ficou incompleto. As observações foram feitas, mas não foram usadas para o seu objetivo que era a determinação das variações da latitude do Rio de Janeiro. Eu tentei, na década de 1960, ter acesso aos dados para processá-los. Mas eles nunca me foram dados.

Pelo menos, minha insistência valeu para que eles fossem retomados e um estudo fosse publicado em 1977 pelo Prof. Lélio Gama. Mas esse estudo não foi submetido a nenhuma revista. A busca de uma cópia no ADS resultou nas mensagens ."full article not available" e "abstract not available".

À época em que eu iniciei na Astronomia, os trabalhos que se faziam no Brasil (todos no Observatório Nacional) eram observações visuais de planetas (desenhados à crayon como no século XIX), determinação da hora de passagem meridiana de planetas com um instrumento de trânsito destinado à determinação da hora sideral, observação de eclipses e medidas de estrelas duplas visuais com um micrômetro filar . estas, a cargo de Ronaldo Mourão, as únicas observações que se aproximavam do que se fazia na época em outros observatórios.

2.   O recomeço

No final dos anos 1950 algumas novas iniciativas ocorreram nas Universidades. Primeiro foi a instalação por A. Postoiev, de uma câmara lunar no IAG que, graças a Paulo Marques, foi usada de modo contínuo entre 1958 e 1968 para a observação da Lua. As observações foram sistematicamente feitas e enviadas ao Observatório Naval de Washington onde estava a coordenação do programa. Os resultados obtidos com as fotografias da câmara lunar não mostraram, porém, a qualidade esperada pelo idealizador do programa e este foi abandonado nos observatórios em que estava sendo realizado.

Depois foram os estudos teóricos de Abrahão de Moraes sobre a influência da forma da Terra no movimento dos primeiros satélites artificiais da Terra. Os trânsitos pelo meridiano de São Paulo, medidos com um rádio-interferômetro experimental instalado no Observatório de São Paulo, permitiram observar a precessão do plano orbital e assim detectar a desigualdade na forma dos dois hemisférios da Terra.

Outra iniciativa importante foram convites a astrônomos estrangeiros para que visitassem o Brasil e propiciassem um primeiro contacto de nossos futuros astrônomos com pesquisadores de renome.

Em 1961 tivemos a visita à USP do Professor Carlos Varsavsky, professor da Universidade de Buenos Aires e ex-aluno de Martin Schwarzschild, que nessa ocasião ministrou um curso sobre Estrutura Interna e Evolução Estelar.

No mesmo ano ocorreu a visita de Jean Delhaye à UFRJ. Essa visita deu origem ao intenso intercâmbio com a França que serviu como orientação ao desenvolvimento inicial da moderna Astronomia Brasileira.

A ela se seguiu o engajamento do IAG em um intenso programa astrométrico e a instalação de um astrolábio impessoal que operou de modo sistemático durante várias décadas.

 

3.   O Observatório Astronômico do ITA

Uma iniciativa fortuita ocorreu no início dos anos 1960 na Divisão de Engenharia Aeronáutica do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Ali juntaram-se um professor de Engenharia Mecânica, amador de Astronomia e desejoso de possuir um telescópio, um técnico com a capacidade de ocupar-se da fabricação das partes ópticas e uma excelente oficina mecânica. Dois espelhos de 52 cm foram talhados e dois telescópios foram feitos, um dos quais ficou no ITA. Para abrigá-lo um pequeno observatório foi construído. Esse observatório e o telescópio  Young-Szulc (nomes de seus construtores), serviu para o início da astrofísica observacional no Brasil.

Nesse ponto eu entro nessa história!

Eu concluí meu doutoramento ao final de 1966 e os planos iniciais previam que eu retornasse ao IAG para ai trabalhar. Mas antes da minha ida para o exterior, eu fui membro do Partido Socialista Brasileiro (PSB), e isso foi usado por pessoas que não me queriam na USP para criar dificuldades. O país vivia uma ditadura militar e as acusações que me foram feitas na época eram graves e poderiam ter tido consequências mais sérias.

Sem lugar para trabalhar, e sabendo por colegas da Física do ITA que estavam estudando em Paris, do interesse do ITA no uso do recém-inaugurado observatório em trabalhos de pesquisa, entrei em contacto com o Prof. Lacaz Neto, reitor do ITA. O contacto rapidamente derivou para um convite para trabalhar no Observatório Astronômico do ITA. No Departamento de Física do ITA a essa época já estavam dois recém-formados: Germano Quast, engenheiro formado no ITA, e José Pacheco, físico formado na USP. Cabe mencionar aqui que antes deles já estivera trabalhando no ITA o Prof. Paulo Benevides, engenheiro formado no ITA em 1962, que mais tarde deixou o ITA para ir trabalhar com Jean Delhaye no Observatório de Besançon.

De início obtive do reitor do ITA um orçamento para permitir a utilização do telescópio Young-Szulc em trabalhos de pesquisa. Pudemos comprar uma fotomultiplicadora, filtros UBV, um padrão de quartzo  e vários acessórios. Em pouco tempo Germano Quast tinha construído nosso fotômetro fotoelétrico e começava a utilizá-lo na observação de diversos objetos do hemisfério Sul (Nova Vulpeculae, RR Cen, GL Carinae, HD 116994, etc.)

4.   A pós-graduação

Tendo um equipamento, o apoio efetivo de astrônomos franceses e o apoio institucional do ITA (Profs. Lacaz Neto, reitor, e Carlos Borges, chefe da Divisão de Pós-Graduação), pudemos sonhar mais alto e criamos a primeira pós-graduação em Astronomia do Brasil. O primeiro mestrado "em Astronomia" foi concluído pelo Germano Quast em 1970. A ele seguiram-se muitos outros (Caio Rodrígues, Jair Barroso Jr., Carlos Alberto Torres, Roberto Vieira Martins, Eduardo Janot Pacheco, Tadashi Yokoyama, Massae Sato, Masayoshi Tsuchida, Wagner Sessin e José Manuel  Baltazar), todos realizados integralmente no ITA.

A pós graduação em Astronomia do ITA também serviu para formar pesquisadores da USP, já que a pós-graduação do IAG só viria a ser instalada em 1972. Fizeram seu mestrado no ITA, primeiro, o nosso sempre saudoso Luis Bernardo Ferreira Clauzet, o primeiro orientado do prof. Paulo Benevides, e também o Walter Maciel, que após um primeiro ano de cursos no ITA, passou a ser orientado pelos primeiros pesquisadores visitantes que trabalharam no IAG.

O saldo do ITA nessa atividade foram 13 mestrados sendo 5 em Astrofísica, 7 em Astronomia Dinâmica e 1 em Astrometria.

Para situar no tempo esse trabalho e realçar sua importância, lembremos que o primeiro mestrado em Astronomia fora do IAG só foi concluído em 1972, na Universidade Mackenzie (Oscar Matsuura), dois anos após o primeiro mestrado concluído no ITA, e o primeiro mestrado em Astronomia da USP, em 1974 (Antonio Mário Magalhães).

Além disso, no Departamento de Astronomia do ITA foram desenvolvidas diversas teses apresentadas nos cursos de pós-graduação em Física e em Matemática, do ITA, e na Universidade de Paris (J.L.Sagnier).

5.   As primeiras observações

As quatro teses de mestrado observacionais, feitas com o uso do telescópio Young-Szulc, merecem um capítulo à parte. A primeira, de Germano Quast, foi baseada em 1 ou 2 anos de observações e nos trabalhos de calibração e testes que, na linguagem de hoje, chamaríamos de "comissionamento do fotômetro". O estudo do período de RR Cen foi publicado.  A segunda, de Jair Barroso Jr., teve por tema o estudo de várias estrelas binárias eclipsantes e envolveu dois anos de observações e outro longo ano de análise das curvas de luz resultantes e determinação de parâmetros geométricos e fotométricos.

Os mestrados de Carlos Alberto Torres e Eduardo Janot Pacheco tem histórias com mais meandros.

A terceira tese observacional do ITA, feita pelo Janot, nasceu de uma conversa de meus tempos de doutoramento em Paris, com Ronaldo Mourão. Ronaldo havia visitado o Observatório de Bordeaux e de lá trouxera vários artigos que poderiam servir de modelos a futuros trabalhos de fotometria no Brasil. Um deles (de P. Mianes), sobre cefeídas, acabou efetivamente, anos depois, servindo de inspiração para a tese de mestrado do Janot. Antes desse trabalho, novos filtros foram instalados reproduzindo 5 cores do sistema de Lick (UVBGR). Foi 1 ano de observações analisadas depois, quando Janot já estava trabalhando no IAG. Dessas observações resultaram uma research note e um artigo publicados em A&A além de uma letter posterior em Ap&SS.

 

A última tese observacional do ITA foi a do Carlos Alberto. Ele deveria trabalhar em estrelas delta Scuti, sob orientação de um recém-doutor francês que viria ficar um ano no ITA. Mas devido às opções políticas desse colega, o governo francês julgou mais prudente vetar sua vinda ao Brasil em missão oficial. Com um problema a resolver, recorri a um artigo que havia lido e que me chamara a atenção por tratar de pesquisa factível com os equipamentos de que dispúnhamos. Assim nasceu a pesquisa sobre as Anãs Vermelhas do tipo BY Draconis, ou estrelas variáveis dMe, que foi a origem de vários programas posteriores envolvendo estrelas jovens. O principal artigo com o conteúdo da tese de mestrado do Carlos Alberto foi publicado em A&A e teve de imediato dezenas de citações (o ADS contabiliza hoje 100 citações). Outros dois artigos foram publicados em A&A and ApL.

 

O Observatório do ITA foi a incubadora que a moderna Astronomia Brasileira precisava para começar a existir.

 

6.   A escolha de sítio.

Outro tópico que caracterizou o período a que se refere este depoimento foi a escolha de sítio para o Observatório Astrofísico Brasileiro. O projeto de ter um Observatório Astrofísico de caráter nacional nasceu das visitas de Jean Delhaye ao Brasil e de suas prolongadas conversas com Abrahão de Moraes e Luiz Muniz Barreto. A escolha de sítio começou com a visita de uma comissão francesa ao Brasil que analisou os dados geográficos e climatológicos existentes e sobrevoou diversas áreas. Uma conclusão errada da comissão foi a de que seria necessário se afastar da costa e eles selecionaram os morros da Piedade (1250 m) e Mateus Leme (1100m), na vizinhança de Belo Horizonte.

Em 1968 já estava claro que esses locais não se prestariam para o fim proposto, mas havia um forte envolvimento emocional, sobretudo com a Piedade. O frei, os seus vinhos, a cozinheira do frei, o seu feijão e a filha da cozinheira -- tornada musa de odes compostas pelos estudantes que faziam as observações meteorológicas -- tornavam o desengajamento difícil. Por pressão de alguns estudantes, porém, realizou-se em Belo Horizonte em 28/30 de abril de 1969 uma reunião para avaliar os rumos da escolha de sítio. Decidiu-se nessa ocasião que a responsabilidade dos trabalhos seria transferida para o ITA e que deveríamos analisar alguns picos na Serra da Mantiqueira. Em Junho, Germano Quast estava na estação montada em Maria da Fé e olhando a redondeza com um binóculo "descobriu" um pico alto e esguio, o Pico dos Dias, entre Brazópolis e Piranguçu. Isso merece explicação. Esse pico não aparecia nas cartas geográficas usadas. Os melhores mapas a que tínhamos acesso eram os mapas aeronáuticos e nos mesmos a área do Pico dos Dias não aparecia com clareza, pois era coberta por hachuras indicando a área de exclusão aérea que serve ao treinamento de alunos da Escola de Aeronáutica de Guaratinguetá!

Logo em seguida começaram os trabalhos de análise daquele local.

Em 1971, após o falecimento do Prof. Abrahão de Moraes, um projeto mais amplo foi elaborado e encaminhado à FAPESP. Nesse projeto se propunha o estudo de 4 locais no Sul de Minas. Dois deles foram vetados pelo assessor da FAPESP e sobraram dois: o Pico dos Dias e a Pedra Branca, em Caldas.

A história que se seguiu já foi relatada em detalhes no meu livro sobre a escolha de sítio para o OAB e também será detalhada na obra que se prepara sobre a criação do LNA. Foram alguns anos de trabalho intenso que culminaram na escolha de Brazópolis para instalar o telescópio de 1m60.

 

7.   O IAG

À mesma época, o problema da institucionalização do IAG se complicava. A recém-concluída reforma universitária deixara o IAG de fora! O IAG ficou relegado a um nível secundário e mal definido.

Para ilustrar essa situação conto que por volta de 1970 eu fui chamado pelo professor Josué Camargo Mendes, diretor do recém-criado "Instituto de Geociências e Astronomia" da USP, para discutir a situação e a organização de um Departamento de Astronomia no "IGA". Tivemos uma conversa bem franca, facilitada pelo fato de que Josué era primo de meu pai. Ficou claro para mim que os docentes de Geociências não estavam muito felizes com a obrigação estatutária de ter um Departamento de Astronomia. E eu deixei claro que, para nós, o lugar da Astronomia na USP era o IAG.

 

1971 foi um ano determinante. No final de 1970, ainda na comoção criada pelo prematuro falecimento do Prof. Abrahão de Moraes, o reitor da USP prometeu solenemente transformar o IAG em uma unidade da USP no mesmo plano que os demais institutos e faculdades.

Com o decisivo apoio do Prof. Waldyr Muniz Oliva, em Março de 1972, o IAG foi transformado em unidade de ensino pesquisa. Os astrônomos que lá já se encontravam trabalhando como contratados para prestação de "serviços técnicos especializados" (Benevides, Pacheco, Janot, Clauzet) tiverem enfim um contrato como docente. E logo em seguida se criava a pós-graduação em Astronomia do IAG.

 

8.   A SAB

Por fim chegamos à criação da SAB. Inicialmente éramos poucos para criar uma sociedade e optamos por uma organização com algum respaldo oficial que facilitasse a consecução de seus propósitos. Tentamos ter uma Comissão Brasileira de Astronomia nos moldes da existente em vários países europeus, que cuidasse do progresso da disciplina no Brasil, e organizasse a cooperação  entre os astrônomos brasileiros. Depois de muita luta conseguimos que a CBA voltasse a existir. Mas o CNPq era viciado em órgãos de cúpula, e nomeou vários diretores de instituições para compô-la. Os astrônomos ficaram de fora! Conseguimos reverter a situação em parte; a CBA "oficial" não foi instalada, mas nada se fez em seu lugar.

Em Agosto de 1971, conseguimos que o CNPq criasse um Comitê Brasileiro para a UAI, cujo primeiro presidente foi o Pierre Kaufman. Éramos 20 participantes trabalhando em 13 comissões (várias do tipo "comissão do eu-sozinho"). Isso não poderia funcionar e não funcionou.   

 

Em Janeiro de 1974 tivemos uma reunião para preparar o capítulo da Astronomia do Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do governo federal, estando presentes: Pierre Kaufmann, Muniz Barreto, José Pacheco e eu mesmo.

Terminada a reunião sobre o PBDCT e o trabalho de confecção de todas as tabelas de planejamentos, aproveitamos a ocasião para discutir nossos problemas.

Concluímos que seria impossível satisfazer as necessidades da nascente Astronomia Brasileira com os poucos instrumentos da Comissão Brasileira para a UAI e que uma sociedade científica, a SAB, deveria ser criada. José Pacheco ficou encarregado de organizar a reunião de fundação, o que aconteceu em Abril de 1974, em uma sala de aulas do Instituto de Matemática e Estatística da USP.

 

O que se seguiu já foi muitas vezes contado. O fato mais marcante e que merece ser testemunhado é que nem os mais otimistas dentre nós tinha a menor ideia da pujança que a Astronomia Brasileira, e por consequente a SAB, viria a adquirir 40 anos depois.

    (S.F.M.)